A parte mais óbvia do problema
é que em decorrência de questões históricas ligadas à exploração de seres
humanos por outros, o corpo negro foi constituído como um corpo de menos valor,
de fácil reposição, tranquilamente substituível. Um corpo também, mutilado de
maneira impune para atender a adestramentos sociais necessários à manutenção do
poder explorador. Um corpo ignorado, quando conveniente, para reforçar sua
menos-valia por meio da negação da condição de corpo-humano.
Cada um dos três argumentos
acima pode ser exemplificado. Vamos então fortalecê-los e torná-los mais
nítidos. Ainda no período escravocrata os corpos negros eram punidos,
vilipendiados, torturados e mutilados, porque podiam ser substituídos com
facilidade. As surras naquele período eram constantes para adestrar os corpos
negros, assim como as ameaças policiais de hoje, aos primeiros suspeitos em
qualquer situação.
Quanto ao corpo negro
ignorado, é fácil percebê-lo na fila de acesso aos locais de arte e cultura,
nos quais a maioria dos frequentadores é branca e estes sequer pedem licença a
uma pessoa negra para passar à sua frente. Também são desconsiderados os corpos
negros de pessoas em situação de rua, mortas pelo frio de São Paulo e tratadas
como parte da paisagem urbana, como aquelas que morrem pelo frio mesmo (como se
fosse aceitável alguém morrer de frio), “sem sinais de violência no corpo”.
O livro #Parem de nos matar!
(Ijumaa, 2016), de minha autoria, documenta em forma de crônicas e textos
opinativos, aquilo que não pode ser esquecido e que pretende robustecer uma
ética do cuidado das pessoas negras consigo mesmas (por meio do registro crítico
de sua memória). Esta é a contribuição da obra em suas 240 páginas e 72
crônicas, para alterar esse estado de coisas.
Trata-se de um livro vivo, em
movimento, que frequentemente depara-se com parentes e amigos de pessoas negras
assassinadas e/ou desaparecidas e, não raro, esses encontros causam
constrangimento e impotência à autora, como aconteceu num curso no SESC
Ribeirão Preto (SP). Lá esteve presente a irmã de Luana Barbosa, jovem lésbica
negra, morta em decorrência de espancamento perpetrado pela polícia, porque
resistiu para não ser revistada por homens. Ou o encontro com Ruth Fiúza, mãe
de Davi Fiúza (desaparecido pela PM baiana em 2015 numa periferia de Salvador),
em mesa promovida pelas Mães de Maio (SP) na reitoria da Universidade Federal da
Bahia (maio, 2017).
A pergunta que arrebenta os
miolos é: o que fazer diante das pessoas que sobreviveram a mortes e
desaparecimentos tão aviltantes? E a resposta possível até o momento tem sido:
prosseguir, via literatura, no exercício de agenciamento de uma produção de
sentidos sobre nós mesmos.
Uma agência que não nos deixe
esquecer quem somos, de onde viemos e para onde vamos como membros de uma mesma
comunidade de destino. Desse modo, Cláudia da Silva Ferreira, arrastada num
porta-malas de viatura policial em Madureira (RJ), não é única, não é um caso
isolado, somos todas Cláudias. Tanto porque, como mulheres negras, estamos
expostas ao mesmo destrato dado a ela, quanto porque todas nós fomos
efetivamente arrastadas durante o martírio de Cláudia da Silva Ferreira.
O já mencionado livro, #Parem
de nos matar! exigiu abertura de janelas para nuançar sua dureza e para que o
leitor pudesse respirar. Fiz isso ao alternar conjuntos de textos que
escrutinam situações de violência e extermínio e outros que demarcam de alguma
forma a resistência das pessoas-alvo do racismo. [...]
1. diáspora: dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica
(Fonte: SILVA, Cidinha. #PAREM
DE NOS MATAR! MEMÓRIA DA LUTA DE PESSOAS NEGRAS COMUNS PARA SE MANTEREM VIVAS.
Disponível em: omnelick2ato.com / https://bit.ly/3CdV7tV)
Resenhas da obra:
- CARNEIRO, Sueli. Temas caros aos direitos humanos na crônica de Cidinha da Silva. Disponível em: literafro – letras.ufmg..br / https://bit.ly/3k15KKk
- MOREIRA, Núbia Regina. NÃO NOS CALAREMOS. NÃO MESMO! Disponível em: UFBA - redalyc.org / https://bit.ly/3E3N4kU
- Livro ‘#Parem de nos matar!’ evidencia genocídio da população negra. Disponível em: geledes.org.br / https://bit.ly/3npUiK7
Vídeo-resenhas da obra:
(Fonte: canal Jornalistas Livres - YouTube / https://bit.ly/3ttNn3H)
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