“Campo Geral” é um caminho sem volta para o leitor de Guimarães Rosa
O professor da USP Luiz Roncari recomenda ao vestibulando ler a obra sem pressa e com a imaginação aberta
Campo Geral começa assim, no aconchego familiar. Guimarães Rosa vai guiando o leitor pelo cenário encantado das matas. Se o leitor se deixar levar pelas descobertas de Miguilim, vai perceber que a leitura é uma oportunidade de conhecer o melhor da literatura brasileira. O livro integra a lista de leituras exigidas para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que seleciona os candidatos a ingressar nos cursos da USP.
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Prof. Luiz Roncari (FFLCH/USP) - Foto: Reprodução |
O professor explica que, em Guimarães Rosa, cada palavra é pensada e tem a sua devida importância. “O autor usa as palavras e as explora em todas as suas possíveis conotações, étimos perdidos e outros possíveis ainda não explorados. Ele é um escritor culto e recusa a escrita fácil, aquela que pretende só passar um recado; para ele a escrita tem também que ser saboreada, como uma fruta. É um momento de gosto, reflexão e descobertas.”
Se o vestibulando sentir dificuldade na leitura do texto, o professor observa que é preciso deixar a escrita aparentemente obscura se revelar no seu tempo e com os caprichos que o autor lhe embutiu. “Quando a sua escrita parece obscura, se temos o cuidado de deixar que se nos revele no seu tempo e com todos os caprichos que o autor lhe embutiu, ela se torna uma coisa viva, que pode nos dar muita alegria intelectual e satisfação.”
A leitura de 'Campo Geral' nos permite apreciar nos seus liames mais cerrados os afetos e as agonias da família média brasileira, que procura imitar o modelo, com seus preconceitos e vícios, da nossa família patriarcal.”"
Importante lembrar que Campo Geral, segundo análise de Roncari, é a primeira das novelas incluídas em Corpo de Baile, um dos livros mais importantes de Guimarães Rosa e da literatura brasileira, daí justificar a sua leitura para o vestibular da Fuvest. “Na primeira edição, de 1956, em dois volumes, o autor as chamava ainda de poemas, e depois passou a considerá-las todas as novelas. Cada uma delas, ao mesmo tempo em que tem a sua autonomia, pode ser lida separadamente e não depende das demais para o seu entendimento, compõe com as outras um todo com certa organicidade. Enquanto tal é que esse livro precisa ainda ser mais estudado, no seu todo. Existem muitos trabalhos sobre cada uma das estórias, mas ainda ficam muitas dúvidas sobre as suas articulações, do que temos só algumas pistas.”
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Máquina de datilografar de Guimarães Rosa/Foto: Atillio Avancini |
Na avaliação de Roncari, “a leitura de Campo Geral permite apreciar nos seus liames mais cerrados os afetos e as agonias da família média brasileira, que procura imitar o modelo, com seus preconceitos e vícios, da nossa família patriarcal”.
“O autor, falando de uma família particular, a de Miguilim, no ninho de afetos e rancores do Mutum, capta as ameaças e riscos que, de certa forma, ela vive na sua generalidade”, observa o professor.
"O narrador acompanha muito de perto o menino Miguilim, as suas dores, alegrias e descobertas do mundo.”
Campo Geral revela para o leitor muitas emoções sensíveis e intelectuais. “O narrador acompanha muito de perto o menino Miguilim, as suas dores, alegrias e descobertas do mundo. Por isso ela é também uma novela de formação, de um menino vivendo, sofrendo e descobrindo o mundo e os homens, mas também reagindo a eles”, esclarece Roncari.
Apesar da inocência, da ingenuidade, Miguilim não é passivo. “Por isso, o final da novela tem um sentido alegórico: quando o médico percebe que ele é míope e lhe empresta os seus óculos e o herói descobre um outro mundo, mais claro e definido do que tinha percebido até o momento, o vê agora nas suas verdades ou pelo menos que ele era muito diferente do que tinha visto. Significa que ele mudou, cresceu ou houve para ele um ganho na percepção do mundo. Esse esclarecimento da visão tem também o significado de que ele aprendeu, não apenas sofreu o mundo, mas deu um passo além no seu conhecimento do que viveu.”
Difícil resumir Campo Geral para uma rápida leitura. O leitor, como bem diz Roncari, terá que ser atencioso. “De uma literatura como a de Guimarães, por tudo o que já disse, é muito difícil de fazer uma síntese. Seria quase a sua negação, já que a sua verdade maior está mais, como ele próprio diz, na sua travessia, quer dizer, na passagem de cada uma das suas palavras, frases e acontecimentos, do que na chegada ao final. Este é quase nada sem passar por elas, o como é tão ou mais importante do que disse. Isso já é um lugar comum sobre a escrita do autor.”
Difícil resumir Campo Geral
para uma rápida leitura. O leitor, como bem diz Roncari, terá que ser
atencioso. “De uma literatura como a de Guimarães, por tudo o que já disse, é
muito difícil de fazer uma síntese. Seria quase a sua negação, já que a sua verdade
maior está mais, como ele próprio diz, na sua travessia, quer dizer, na
passagem de cada uma das suas palavras, frases e acontecimentos, do que na
chegada ao final. Este é quase nada sem passar por elas, o como é tão ou mais
importante do que disse. Isso já é um lugar comum sobre a escrita do autor.”
“O sítio era um ninho de afetos e recalques familiares vivendo as suas ameaças: externas, simbolizadas pela selvageria dos macacos e antas; e internas, simbolizadas pelos porcos do Patori.”
Certo é que o leitor vai se deixar envolver pela imaginação infantil. “A estória é sobre uma família camponesa média, de pequenos arrendatários de terras, endividados, sendo eles próprios que trabalhavam com alguns ajudantes, no Mutum. Ele ficava na fronteira entre o conhecido e o desconhecido, tanto que os lugares próximos ainda não eram nem nominados”, conta o professor. “O sítio era um ninho de afetos e recalques familiares vivendo as suas ameaças: externas, simbolizadas pela selvageria dos macacos e antas; e internas, simbolizadas pelos porcos do Patori. Elas eram as possibilidades de traição, como as da mãe com o tio Terêz e o Luisaltino, e do incesto, como a inclinação de Miguilim, que dizia a si mesmo que ‘era ele quem ia se casar com a Drelina’, uma de suas irmãs. Era contra essas ameaças que a Vovó Izidra, na verdade uma tia-avó da mãe, uma espécie de portadora da ordem familiar patriarcal, como Hera, irmã de Zeus, praguejava e lutava. Ela temia que a mãe, Nhanina, seguisse os impulsos desorganizadores da sua mãe, Vó Benvinda, que tinha sido, como dizia um vaqueiro, ‘quando moça mulher-à-toa’. O curso da novela são os episódios vividos por Miguilim, das suas perdas, como a expulsão do lugar de tio Terêz, a da cachorrinha Pingo-de-ouro, a morte do irmão mais próximo, Dito, que ele ouvia muito, lhe ensinava coisas sábias sobre a vida e de quem ele gostava tanto, o assassinato de Luisaltino pelo pai e o seu suicídio.”
A novela de João Guimarães Rosa é ilustrada com desenhos de grande apelo visual de Djanira, desenhista acolhida pela comunidade artística brasileira entre as décadas de 1950 e 1980 – Foto: Ilustrações do livro Campo Geral feitas pela artista Djanira
A novela de João Guimarães Rosa é ilustrada com desenhos de grande apelo visual de Djanira, desenhista acolhida pela comunidade artística brasileira entre as décadas de 1950 e 1980
Segundo o professor, “tudo se passa a partir do ângulo de visão de Miguilim, que o narrador acompanha de muito perto, como pelas costas, mas todos têm também um significado extra, mítico-simbólico – tio Terêz, vó Izidra, Mãetina, Nhanina, Dito, o Patori, seo Aristeu –, acrescido pelo autor, que faz o narrador combiná-lo com as percepções agudas dos sentimentos do menino. Por isso, cada personagem tem um composto empírico, dado pela sua experiência com o herói, Miguilim, e um elemento simbólico, que só o autor com sua intervenção poderia acrescentar à exposição do narrador, aquele sujeito invisível que nos conta a estória”.
O professor afirma que “é importante o leitor saber distinguir o que é da experiência do herói, o menino no seu embate com o mundo e os homens, o que é do autor, senhor de um conhecimento que só um sujeito muito culto poderia ter e sutilmente acrescentar, e o que é do narrador, aquele que reúne os saberes dos mais diferentes campos, coisas do sertão e dos livros, e conta tudo para nós”.
Para os interessados em saber mais detalhes ou pesquisar a obra de Guimarães Rosa, há dois livros escritos pelo professor Luiz Roncari: O Brasil de Rosa: o Amor e o Poder e Lutas e Auroras: os Avessos do Grande Sertão: Veredas, ambos publicados pela Editora da Unesp.
(Fonte: KYOMURA, Leila. “Campo Geral” é um caminho sem volta para o leitor de Guimarães Rosa Disponível em: Jornal da USP - Livros FUVEST / https://bit.ly/3TDoUar)
OUTRAS RESENHAS SOBRE CAMPO GERAL
- ZINDACTA, Vitor. Resenha:
Campo Geral de Guimarães Rosa. Disponível em: postliteral.com.br / https://bit.ly/3zuJh2I
- ILHÉU, Taís. Campo geral: resumo e análise da obra. Disponível em: Guia do Estudante / https://bit.ly/3TIJru2
- QUINELATO, Rosangela. Análise
do livro Campo Geral. Disponível em: Vestibulando https://bit.ly/4eUEgj9
VÍDEO-RESENHAS SOBRE CAMPO GERAL
QUEM FOI GUIMARÃES ROSA?
João Guimarães Rosa, mais conhecido por Guimarães Rosa, nasceu no dia 27 de junho de 1908, na cidade de Cordisburgo, Minas Gerais. Viveu nessa região interiorana, onde o pai era juiz de paz, vereador e comerciante, até 1918, período que cursou os estudos primários. Posteriormente, aos 9 anos de idade, mudou-se para a casa de seus avós maternos, situada em Belo Horizonte. Nesse novo lar, teve a forte influência de seu avô, que era médico, escritor, filósofo e professor, o que contribuiu para que o então menino se encantasse pelas letras e pelo conhecimento.Na capital mineira, cursou
Medicina na Faculdade de Minas Gerais (atual UFMG), formando-se em 1930. Nessa
fase, foram publicados seus primeiros contos na revista O Cruzeiro. Depois de
formado, exerceu a profissão em Itaguara, município de Itaúna, interior
mineiro, onde permaneceu por dois anos, sendo motivo de apreço na região, pois
atendia seus doentes a cavalo pelas fazendas e sítios da zona rural.
Falante fluente de várias
línguas, Guimarães Rosa tornou-se diplomata.
Durante a Revolução
Constitucionalista, em 1932, voltou a Belo Horizonte para servir como médico
voluntário da Força Pública. Em seguida, atuou como oficial médico no 9º
Batalhão de Infantaria na cidade de Barbacena.
Enquanto exercia a medicina, iniciou o processo de escrita literária, sendo agraciado em 1936 com o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras pela coletânea de poemas Magma. Essa obra, que ganhou a premiação em primeiro lugar, só foi publicada postumamente, em 1997.
Guimarães Rosa, em razão do
enorme apreço que tinha por línguas estrangeiras, o que lhe conferiu o domínio
de nove idiomas, deixou a medicina e optou pela carreira diplomática, o que
também lhe proporcionou maior contato com o mundo das letras. Em 1934, foi
morar no Rio de Janeiro e, em seguida, foi nomeado vice-cônsul em Hamburgo, na
Alemanha. Nesse período, como o país germânico estava sob o domínio nazista,
Rosa, exercendo sua influência como diplomata, ajudou, como evidenciam
documentos históricos, inúmeras vítimas do nazismo a fugirem, assinando, como
vice-cônsul, o visto em seus passaportes. Em 1942, quando o Brasil rompeu
aliança com a Alemanha, Guimarães Rosa foi preso, assim como outros brasileiros
que viviam naquele país.
Após ser liberto da prisão, o que ocorreu no fim de 1942, foi nomeado secretário da Embaixada Brasileira em Bogotá, na Colômbia. Posteriormente, entre 1946 e 1951, residiu em Paris, onde consolidou sua carreira diplomática. Faleceu em 19 de novembro de 1967, na cidade do Rio de Janeiro.
(Fonte: portugues.com.br / https://bit.ly/3BrTTjx)
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